domingo, 28 de março de 2021

 

Paulo, o Pedinte - I

 

Um dos “pioneiros” do Covid, em Uberaba, foi Paulo, o pedinte meu amigo.

Não o conheci quando eu ainda estava na carcaça, mas, quase toda terça-feira, à noite, ao término das reuniões de estudos na Casa Espírita “Bittencourt Sampaio”, tínhamos oportunidade de nos encontrar à porta da Instituição.

Não raro, igualmente, nos víamos, quando, então, ao dormir em qualquer pedaço de chão, ele conseguia colocar a ponta do nariz deste Outro Lado, antes de voltar correndo para o corpo...

Paulo, em vidas anteriores, fora um boêmio inveterado, e possuía, sim, alma de artista – gostava de escultura, de modelagem, etc. Em consequência de seus desregramentos, tinha a barriga toda costurada – quase desencarnara antes, em três ou quatro cirurgias que lhe extirparam pedaços do estômago e de outros órgãos...

Ele vivia nas ruas e costumava fazer “ponto” na praça da Igreja da Abadia, sendo conhecido de muitos – educado, conversa boa, apenas tendo ciúme quando um outro pedinte invadia a sua “área”, e a ele se adiantava nos adjutórios...

Ano passado, vitimado pelo Covid, foi levado para o Hospital das Clínicas, quase sem respirar – eu não sou da época do Covid, ou do “Sars 2”, mas sou do tempo do enfisema, e sei o que é desencarnar sufocado...

Quando Paulo, na condição de indigente, fechou os olhos para as ilusões do mundo, fui vê-lo, sendo que, ao avistar-me, foi logo puxando prosa:

- Parece que eu conheço o senhor...

- Não sei... Tenho uma cara comum...

- Não, eu conheço o senhor... Esse seu jaleco branco é famoso... O senhor, por acaso, é o Dr. Inácio Ferreira, o médico lá do Sanatório Espírita?!...

- Dizem que sou...

- Ah, eu já o vi de longe, lá na porta do Sanatório... Fiz um busto do senhor, em argila, para um amigo...

- Eu vi esse tal busto...

- O senhor gostou?!...

- Não, não gostei – respondi.

Ele sorriu meio sem graça e perguntou:

- Uai, por quê?!...

- Por causa do nariz – você me botou com o nariz do Manoel Roberto... Eu nunca tive um nariz daquele tamanho, mais parecido com a tromba de um elefante...

Paulo sorriu e... tossiu.

- Tenha calma – disse-lhe –, não faça grandes esforços...

- A culpa é do senhor, que me fez sorrir...

- Sempre me culpam de alguma coisa – aliás, em matéria de culpa, creio que só tenho perdido para um político brasileiro...

- Ah, já sei...

- Pois é, Paulo – falei, mudando de assunto. – Você tanto fez que... deixou a carcaça!...

- Desencarnei?!...

- Sim...

- Tão fácil assim?!...

Houve pequeno silêncio que não quebrei.

- E agora?! – indagou-me.

- ?!...

- Eu não sei fazer nada... Estou sem gás de cozinha na minha casa, precisava de uns trocados...

- Ficou sem gás em sua casa e... em seus pulmões...

- Pneumonia, Doutor?!...

- Também...

- E agora?! – repetiu a pergunta. – Eu não tenho ninguém...

- Você tem uma multidão...

- O que vou fazer?!...

- Se quiser, posso empregá-lo, a troco de casa, comida e roupa lavada e passada...

- E não sei fazer nada...

- Sabe varrer o chão?!...

- Varrer o chão é simples, mas eu nem vassoura tenho...

- Com vassoura, meu irmão, você não se preocupe, pois temos um enorme estoque – a bem da verdade, temos uma fábrica de vassouras...

Paulo ficou pensativo – não estava mesmo, desde muito, acostumado a trabalhar.

- Paulo, esqueça o mendigo, que já era, ou já foi, sei lá... Comece a varrer por fora o que você precisa varrer por dentro – todos carecemos de varrer por dentro!...

Silêncio.

- É pegar, ou largar!...

 

INÁCIO FERREIRA

 

Uberaba – MG, 28 de Março de 2021.