Paulo, o Pedinte - I
Um dos “pioneiros” do Covid, em Uberaba, foi Paulo, o pedinte
meu amigo.
Não o conheci quando eu ainda estava na carcaça, mas, quase
toda terça-feira, à noite, ao término das reuniões de estudos na Casa Espírita
“Bittencourt Sampaio”, tínhamos oportunidade de nos encontrar à porta da
Instituição.
Não raro, igualmente, nos víamos, quando, então, ao dormir em
qualquer pedaço de chão, ele conseguia colocar a ponta do nariz deste Outro
Lado, antes de voltar correndo para o corpo...
Paulo, em vidas anteriores, fora um boêmio inveterado, e
possuía, sim, alma de artista – gostava de escultura, de modelagem, etc. Em
consequência de seus desregramentos, tinha a barriga toda costurada – quase
desencarnara antes, em três ou quatro cirurgias que lhe extirparam pedaços do
estômago e de outros órgãos...
Ele vivia nas ruas e costumava fazer “ponto” na praça da
Igreja da Abadia, sendo conhecido de muitos – educado, conversa boa, apenas
tendo ciúme quando um outro pedinte invadia a sua “área”, e a ele se adiantava
nos adjutórios...
Ano passado, vitimado pelo Covid, foi levado para o Hospital
das Clínicas, quase sem respirar – eu não sou da época do Covid, ou do “Sars
2”, mas sou do tempo do enfisema, e sei o que é desencarnar sufocado...
Quando Paulo, na condição de indigente, fechou os olhos para
as ilusões do mundo, fui vê-lo, sendo que, ao avistar-me, foi logo puxando
prosa:
- Parece que eu conheço o senhor...
- Não sei... Tenho uma cara comum...
- Não, eu conheço o senhor... Esse seu jaleco branco é
famoso... O senhor, por acaso, é o Dr. Inácio Ferreira, o médico lá do
Sanatório Espírita?!...
- Dizem que sou...
- Ah, eu já o vi de longe, lá na porta do Sanatório... Fiz um
busto do senhor, em argila, para um amigo...
- Eu vi esse tal busto...
- O senhor gostou?!...
- Não, não gostei – respondi.
Ele sorriu meio sem graça e perguntou:
- Uai, por quê?!...
- Por causa do nariz – você me botou com o nariz do Manoel
Roberto... Eu nunca tive um nariz daquele tamanho, mais parecido com a tromba
de um elefante...
Paulo sorriu e... tossiu.
- Tenha calma – disse-lhe –, não faça grandes esforços...
- A culpa é do senhor, que me fez sorrir...
- Sempre me culpam de alguma coisa – aliás, em matéria de
culpa, creio que só tenho perdido para um político brasileiro...
- Ah, já sei...
- Pois é, Paulo – falei, mudando de assunto. – Você tanto fez
que... deixou a carcaça!...
- Desencarnei?!...
- Sim...
- Tão fácil assim?!...
Houve pequeno silêncio que não quebrei.
- E agora?! – indagou-me.
- ?!...
- Eu não sei fazer nada... Estou sem gás de cozinha na minha
casa, precisava de uns trocados...
- Ficou sem gás em sua casa e... em seus pulmões...
- Pneumonia, Doutor?!...
- Também...
- E agora?! – repetiu a pergunta. – Eu não tenho ninguém...
- Você tem uma multidão...
- O que vou fazer?!...
- Se quiser, posso empregá-lo, a troco de casa, comida e
roupa lavada e passada...
- E não sei fazer nada...
- Sabe varrer o chão?!...
- Varrer o chão é simples, mas eu nem vassoura tenho...
- Com vassoura, meu irmão, você não se preocupe, pois temos
um enorme estoque – a bem da verdade, temos uma fábrica de vassouras...
Paulo ficou pensativo – não estava mesmo, desde muito,
acostumado a trabalhar.
- Paulo, esqueça o mendigo, que já era, ou já foi, sei lá...
Comece a varrer por fora o que você precisa varrer por dentro – todos carecemos
de varrer por dentro!...
Silêncio.
- É pegar, ou largar!...
INÁCIO FERREIRA
Uberaba – MG, 28 de Março de 2021.